O cio: A recuperação de uma sexualidade sagrada
Há um ser que vive no subterrâneo selvagem das naturezas das mulheres. Essa criatura faz parte da nossa natureza sensorial e, como qualquer animal completo, possui seus próprios ciclos naturais e nutritivos. Esse ser é curioso, gregário, transbordante de energia em certas horas, submisso em outras. Ele é sensível a estímulos que envolvam os sentidos: a música, o movimento, o alimento, a bebida, a paz, o silêncio, a beleza, a escuridão.
É esse aspecto da mulher que tem cio. Não um cio voltado exclusivamente para a relação sexual, mas uma espécie de fogo interior cuja chama cresce e depois abaixa, em ciclos. A partir da energia liberada nesse nível, a mulher age como lhe convém. O cio da mulher não é um estado de excitação sexual, mas um estado de intensa consciência sensorial que inclui sua sexualidade, sem se limitar a ela.
Seguem-se três histórias que encarnam o obsceno nos termos em que estamos usando a palavra, ou seja, uma espécie de encanto sexual/sensual que gera emoções agradáveis. As três tratam das deusas sujas. Chamo-as de sujas porque estiveram muito tempo vagueando debaixo da terra. No sentido positivo, elas pertencem à terra fértil, à lama, ao estrume — à substância criadora da qual se origina toda arte. Na realidade, as deusas sujas representam aquele aspecto da Mulher Selvagem que é tanto sexual quanto sagrado.
Baubo: a deusa do ventre
Há uma expressão muito forte que diz: Dice entre las piernas, "ela fala do meio das pernas". Essas pequenas histórias "do meio das pernas" são encontradas em todo o mundo. Uma delas é a história de Baubo, uma deusa da Grécia antiga, a chamada "deusa da obscenidade". Ela tem nomes mais antigos, como por exemplo Iambe, e aparentemente os gregos a adotaram de culturas muito mais antigas.
Ela é uma das divindades mais adoráveis e picarescas que habitaram o Olimpo. Esta é a minha versão da cantadora, baseada num resquício selvático de Baubo que ainda cintila na mitologia grega pós-matriarcal e nos hinos homéricos.
Deméter, a mãe-terra, tinha uma linda filha chamada Perséfone, que estava um dia brincando ao ar livre. Perséfone encontrou por acaso uma flor de rara beleza e estendeu os dedos para tocar seu lindo cálice. De repente, a terra começou a tremer e uma gigantesca fenda se abriu em ziguezague. Das profundezas da terra chegou Hades, o deus dos Infernos. Ele chegou alto e majestoso numa biga negra puxada por quatro cavalos da cor de fantasmas.
Hades apanhou Perséfone, levando-a para sua biga, em meio a uma confusão de véus e sandálias. Ele guiou então seus cavalos cada vez mais para dentro da terra. Os gritos de Perséfone foram ficando cada vez mais fracos à medida que a fenda foi se fechando como se nada tivesse acontecido. Por toda a terra, abateu-se um silêncio e o perfume de flores esmagadas.
E a voz da donzela a gritar ecoou nas pedras das montanhas e borbulhou num lamento vindo do fundo do mar. Deméter ouviu os gritos das pedras. Ela ouviu, também, o choro das águas. Arrancou, então, a grinalda dos seus cabelos imortais, deixou cair de cada ombro seus véus escuros e saiu a sobrevoar a terra como uma ave enorme, procurando, chamando por sua filha.
Naquela noite, uma velha à frente de uma gruta comentou com suas irmãs que havia ouvido três gritos naquele dia. Um, o de uma voz jovem que gritava de pavor; um outro que implorava ajuda; e um terceiro, o de uma mãe que chorava. Não se via Perséfone em parte alguma. E assim começou a procura longa e enlouquecida de Deméter por sua filha querida. Deméter esbravejava, chorava, gritava, fazia perguntas, procurava debaixo, dentro e em cima de todos os acidentes geográficos, implorava por misericórdia, implorava pela morte, mas não conseguia encontrar sua filha amada. Assim, ela, que havia gerado o crescimento perpétuo de tudo, amaldiçoou todos os campos férteis do mundo, gritando na sua dor.
— Morram! Morram! Morram!
Em decorrência da maldição de Deméter, nenhuma criança poderia nascer, nenhum trigo poderia crescer para se fazer pão, nenhuma flor para as festas, nenhum ramo para os mortos. Tudo ficou murcho e esgotado na terra crestada e nos seios secos. A própria Deméter não mais se banhava. Seus mantos estavam encharcados de lama; seus cabelos pendiam em cachos imundos. Muito embora a dor no seu coração fosse tremenda, ela não se entregava. Depois de muita investigação, de muitos pedidos e de muitos incidentes, tudo levando a nada, ela afinal perdeu as forças ao lado de um poço numa aldeia onde não era conhecida. E quando recostou seu corpo dolorido na pedra fresca do poço, chegou por ali uma mulher, ou melhor, uma espécie de mulher. E essa mulher chegou dançando até Deméter, balançando os quadris de um jeito que sugeria a relação sexual, e balançando os seios nessa sua pequena dança. E, quando Deméter a viu, não pôde deixar de sorrir um pouco.
A fêmea que dançava era realmente mágica, pois não tinha nenhum tipo de cabeça, seus mamilos eram seus olhos e sua vulva era sua boca. Foi com essa boquinha que ela começou a regalar Deméter com algumas piadas picantes e
engraçadas. Deméter começou a sorrir, depois deu um risinho abafado e em seguida uma boa gargalhada. Juntas, as duas mulheres riram, a pequena deusa do ventre, Baubo, e a poderosa deusa mãe da terra, Deméter.
E foi exatamente esse riso que tirou Deméter da sua depressão e lhe deu energia para prosseguir na sua busca pela filha, que acabou em sucesso, com a ajuda de Baubo, da velha Hécate, e do sol Hélios. Restituíram Perséfone à sua mãe. O mundo, a terra e o ventre das mulheres voltaram a vicejar.
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Sempre gostei mais dessa pequena Baubo do que de outras deusas na mitologia grega, talvez mais do que de qualquer outra figura, ponto final. Ela sem dúvida tem como origem as deusas do ventre do período neolítico, que são misteriosas figuras sem cabeça e às vezes sem pés e sem braços. É insignificante chamá-las de figuras de fertilidade, porque elas são muito mais do que isso. Elas são talismãs da conversa da mulher — vocês sabem, aquele tipo de conversa que as mulheres nunca, nunca mesmo, teriam na frente de um homem, a não ser que fosse sob circunstâncias raras. Esse tipo de conversa.
Além do mais, a pequena deusa Baubo nos dá a idéia interessante de que um pouco de obscenidade pode ajudar a desfazer uma depressão. E é verdade que certos tipos de riso, que provêm de todas as histórias que as mulheres contam umas para as outras, histórias que são tão apimentadas ao ponto de serem de total mau gosto... essas histórias ativam a libido. Elas acendem o fogo do interesse da mulher pela vida.
E quanto a "falar com a vulva", trata-se simbolicamente de falar a partir da primae materia, o nível mais básico e honesto da verdade — a boca vital. O que mais haveria a dizer além de que Baubo fala do filão mestre, da mina profunda, literalmente das profundezas. Na história em que Deméter procura sua filha, ninguém sabe que palavras Baubo teria realmente dito a Deméter. Mas podemos ter algumas idéias.
Coyote Dick*
* Dick é a forma hipocoristica de Richard, mas é também um termo vulgar para designar o pênis. (N. da T.)
Era uma vez Coyote Dick, e ele era tanto a criatura mais esperta quanto a mais tonta que jamais se podia esperar encontrar. Ele estava sempre querendo comer alguma coisa, sempre trapaceando as pessoas para conseguir o que queria e, em qualquer outra hora, estava dormindo.
Bem, um dia quando Coyote Dick estava dormindo, seu pênis ficou realmente entediado e resolveu abandonar Coyote para viver sozinho uma aventura. Foi assim que o pênis se soltou de Coyote Dick e saiu correndo pela estrada. Na realidade, ele pulava pela estrada afora já que possuía só uma perna.
E ele foi pulando e pulando, e se divertindo até que saltou da estrada e entrou na floresta, onde — Ah, não! — ele pulou direto numa moita de urtigas.
— Ai! — gritou ele. — Ai, ai, ai! — berrou ele. — Socorro! Socorro!
O barulho dessa gritaria toda acordou Coyote Dick e, quando ele estendeu a mão para dar partida no coração com a manivela, como de costume, viu que ela não estava mais lá. Coyote Dick saiu correndo pela estrada, segurando-se no meio das pernas, e afinal encontrou seu pênis passando pela maior dificuldade que se pudesse imaginar. Com grande delicadeza, Coyote Dick tirou seu pênis aventureiro do meio das urtigas, acarinhou-o, tranqüilizou-o e o devolveu ao seu lugar certo.
“A moral é que, mesmo depois de Coyote Dick sair do meio das urtigas, elas fizeram seu pau coçar feito louco para todo o sempre. E é por isso que os homens estão sempre chegando perto das mulheres e querendo se esfregar nelas com aquele olhar de "Estou com uma coceira". Pois é, aquele pau universal está coçando desde a primeira vez que fugiu do dono.”
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É esse o tipo de história que eu realmente acho que Baubo contou. Seu repertório inclui qualquer coisa que faça as mulheres rirem desenfreadas, sem ligar para as amídalas aparecerem, com a barriga solta, com os selos balançando.
No sagrado, no obsceno, no sexual, há sempre uma risada selvagem à espera, um curto período de riso silencioso, a gargalhada de velha obscena, o chiado que é um riso, a risada que é selvagem e animalesca ou o trinado que é como uma volata. O riso é um lado oculto da sexualidade feminina: ele é físico, essencial, arrebatado, revitalizante e, portanto, excitante. É um tipo de sexualidade que não tem objetivo, como a excitação genital. É uma sexualidade da alegria, só pelo momento, um verdadeiro amor sensual que voa solto e que vive, morre e volta a viver da sua própria energia. Ele é sagrado por ser tão medicinal. É sensual por despertar o corpo e as emoções. Ele é sexual por ser excitante e gerar ondas de prazer. Ele não é unidimensional, pois o riso é algo que compartilhamos com nosso próprio self bem como com muitos outros. É a sexualidade mais selvagem da mulher.
Segue-se mais um exemplo de histórias de mulheres e de deusas sujas. Essa história conheci quando criança. É surpreendente o que as crianças ouvem que os adultos acham que elas não ouvem.
Uma viagem a Ruanda
O general Eisenhower ia visitar suas tropas em Ruanda. O governador queria que todas as mulheres nativas se postassem ao longo da estrada de terra para dar vivas e acenar em boas-vindas a Eisenhower quando ele passasse no seu jipe. O único problema era que as mulheres nativas nunca usavam roupa a não ser um colar de contas e às vezes um minúsculo cinto de correia.
Não, não, isso não seria conveniente. Portanto, o governador chamou o chefe da tribo e lhe falou do seu problema.
— Não se preocupe — disse o chefe. Se o governador conseguisse algumas dúzias de saias e blusas, ele se certificaria de que as mulheres se apresentariam vestidas nesse acontecimento especial. E esses trajes o governador e os missionários da região conseguiram obter.
No entanto, no dia do desfile e apenas poucos minutos antes de Eisenhower descer pela longa estrada no seu jipe, descobriu-se que apesar de todas as mulheres estarem usando obedientemente as saias, elas não haviam gostado das blusas e as haviam deixado em casa. Pois agora todas as mulheres; estavam enfileiradas dos dois lados da estrada, com saias, mas com o peito nu, e sem mais nenhuma roupa, nem mesmo roupa de baixo.
Ora, o governador ficou apoplético ao saber disso e convocou, irado, o chefe. Este lhe assegurou que sua mulher havia conversado com ele, garantindo-lhe que as mulheres haviam concordado com um plano para cobrir os seios quando o general estivesse passando.
— Você tem certeza? — berrou o governador.
— Tenho toda a certeza — respondeu o chefe. Bem, não havia muito tempo para discutir, e nós só podemos tentar adivinhar qual foi a reação do general Eisenhower quando seu jipe veio passando ruidoso e uma mulher de seios nus atrás da outra levantava graciosamente a frente da saia rodada e cobria o rosto com ela.
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Jung observou que, se alguém procura seu consultório queixando-se por um motivo sexual, o verdadeiro motivo muitas vezes era mais um problema do espírito e da alma. Quando uma pessoa relatava um problema de natureza espiritual, muitas vezes era na realidade um problema de ordem sexual.
Nesse sentido, a sexualidade pode ser imaginada como um bálsamo para o espírito, sendo, portanto, sagrada. Quando o riso sexual é medicinal, ele é um riso sagrado. E aquilo que provoca o riso medicinal é também sagrado. Quando o riso ajuda sem prejudicar, quando ele alivia, reorganiza, põe em ordem, reafirma a força e o poder, esse é o riso que gera a saúde. Quando o riso deixa as pessoas alegres por estarem vivas, felizes por estarem aqui, com maior consciência do amor, elevadas pelo eros, quando ele desfaz sua tristeza e as isola da raiva, ele é sagrado. Quando elas se tornam maiores, melhores, mais generosas, mais sensíveis, ele é sagrado.
No arquétipo da Mulher Selvagem, há muito espaço para a natureza das deusas sujas. Na natureza selvagem, o sagrado e o irreverente, o sagrado e o sexual, não estão separados, mas vivem juntos como imagino um grupo de velhas esperando na estrada que nós apareçamos. Elas estão ali na sua psique, esperando que você apareça, experimentando suas histórias umas com as outras e rindo como loucas.
Postado por Carmen Corrêa - fonte original: http://lobasquecorrem.blogspot.com/2011/11/11-as-deusas-sujas.html
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